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11/06/2012
Profº Gaudêncio Torquato
O Estado de S.Paulo
Profº Gaudêncio Torquato
O Estado de S.Paulo
Se todos os brasileiros são iguais perante a lei,
nos termos do artigo 5.º da Constituição federal, por que alguns são tratados
de maneira diferente? Se os administradores públicos, de qualquer dos Poderes e
em todos os níveis de governo, devem submeter-se ao princípio da publicidade,
nos termos do artigo 37 da mesma Lei Maior, por que alguns se afastam do critério?
Se o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, ainda de acordo com a Carta Magna, agora pelo parágrafo único do
artigo 1.º, por que uns prestam contas de seu comportamento a ele (povo) e
outros não? São algumas das interrogações que podem balizar a decisão dos
senadores sobre a extinção ou limitação do voto secreto, a ser objeto de
apreciação pelo plenário da Casa nos próximos dias. A indicação de que o Senado
vai avançar nessa matéria, abrindo o voto para cassações de mandatos
parlamentares, se insere no rol de esforços do Parlamento para aprimorar os
estatutos do nosso Estado Democrático de Direito.
O território do voto secreto é povoado de buracos.
A começar pelo tratamento diferenciado que se presta aos corpos dirigentes de
nossa democracia representativa. Vejamos. Na esfera do Poder Executivo,
acusações contra o presidente da República passam pelo crivo de dois terços da
Câmara dos Deputados (artigo 86 da Constituição) e os crimes de
responsabilidade são objeto de definição em lei especial, que estabelece as
normas do processo e julgamento (parágrafo único do artigo 85). Não se
explicita, nessa esfera, o sistema de voto - aberto ou secreto -, entrando a
questão no compartimento do "silêncio eloquente", conforme assinala o
constitucionalista Adilson de Abreu Dallari, que ainda pinça a lembrança:
"Quando o voto deve ser secreto, a Constituição assim o estipula
expressamente". Como se viu no impeachment do presidente Fernando Collor,
o voto foi nominal, ou seja, aberto, atendendo à disposição da lei em vigor, a
de n.º 1.070/50. Em defesa do voto aberto saliente-se também o já citado
princípio constitucional da publicidade, cuja aplicação vale para os
integrantes de todos os Poderes. Por isso é de estranhar que os quadros
legislativos recebam tratamento diferenciado em situações e circunstâncias que
constituem interesse da coletividade.
No caso do Poder Legislativo, é oportuno frisar que
os representantes contam com a prerrogativa - legítima e democrática - da inviolabilidade
por opiniões, palavras e votos. Trata-se de requisito fundamental para a
independência do exercício funcional. Seria trágico para a democracia se o
tacão da censura submetesse o corpo parlamentar a adotar a cartilha de
pensamento do Poder Executivo ou de grupos de interesse. Dito isto, não há como
deixar de reconhecer a forte legitimidade do voto secreto no Parlamento.
Ampara-se, portanto, no escopo da salvaguarda do bem comum, da defesa da
vontade popular, da garantia de preceitos constitucionais, enfim, da
preservação dos valores democráticos. Não é o caso do julgamento de chefes de
Executivo, conforme já se mostrou, mas é, seguramente, a situação que abarca a
indicação de membros do Supremo Tribunal Federal, cuja aprovação depende do
corpo parlamentar. Parlamentares que, por acaso, desaprovem nomes de
magistrados encaminhados pelo presidente da República para compor a Corte
poderão eventualmente ser julgados pelos próprios. Logo, o voto fechado tem o
condão de escudar a identidade parlamentar, evitando dissabores futuros e
indesejáveis climas de suspeita.
O voto secreto faz-se necessário, ainda, na
apreciação e no julgamento dos vetos presidenciais, levando em conta o
extraordinário poder do nosso sistema presidencialista. Não convém escancarar a
votação para julgar decisões emanadas do Palácio do Planalto, principalmente
quando chegam ao Parlamento na forma de veto a projetos de lei. O Congresso
exerce o poder de analisar vetos presidenciais, decidindo com o voto secreto
por sua manutenção ou derrubada. Imagine-se a contrariedade de um presidente ao
se ver obrigado a publicar no Diário Oficial uma lei sem os vetos que a
ela fez. Chegamos, agora, ao escrutínio secreto para julgamento dos pares,
conforme estabelece o parágrafo 2.º do artigo 55. A perda de mandato do
deputado e do senador decorrente de proibições arroladas no artigo 54 da
Constituição, de procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar e de
condenação criminal em sentença transitada em julgado, se dá por votação
secreta e com o quórum de maioria absoluta. A justificativa para o sigilo é a
teia do constrangimento que o voto aberto proporcionaria. Parlamentares
poderiam sentir-se constrangidos em condenar colegas com quem mantêm relação,
se não de amizade, ao menos de respeito. Os desafetos, ao que se constata,
constituem a exceção, não a regra.
Neste ponto convém ponderar que o detentor de
mandato exerce a indeclinável obrigação de prestar contas de atos e atitudes
aos eleitores. Há de se submeter ao controle de suas decisões. A partir do
momento em que passa a exercer a representação conferida pelo povo, o
parlamentar se obriga a compartilhar a trajetória pública com a sociedade. Esse
é o ditame do exercício do poder na vida republicana. O chamado "voto
corporativo", que se desenvolve em função do vínculo entre iguais que
trabalham sob a mesma cúpula, é figura insustentável diante do império da ética
e da moral, cujos domínios se expandem nos múltiplos espaços da sociedade
organizada. Não há mais sentido em guardar segredo no julgamento de
parlamentares. A oxigenação dos pulmões sociais está a exigir assepsia,
independência, justiça. A soberania popular ordena que a representação política
se paute por transparência de atitudes e decisões. Onde o poder é oculto, já
dizia Bobbio, tende a ser oculto o contrapoder, o poder invisível. Nas
ditaduras floresce a cultura do sigilo. O Parlamento deve ser o primeiro Poder
a implantar nas democracias o governo do poder visível.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular
da USP e consultor político e de comunicação. Twitter: @GaudTorquato
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